quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A torradeira amável e a varinha mágica com mau feitio II

Quanto a mim…ela conheceu-me sem livro de instruções, aquilo que era possível conhecer, talvez um pouco menos, na verdade, bastante menos do que aquilo que seria possível conhecer. Sou simples de utilizar mas fiquei sem livro de instruções muito cedo. Entre uma panela de sopa e uma compota de tomate…foi uma história trágica... O livro de instruções estava na bancada de pedra junto ao fogão, tão perto que pegou fogo. Nem eu mesma o li… o que vale é que sou simples de utilizar…

Nesse dia, durante o fogo, com o pânico, com o fumo, cai ao chão. Uma das minhas lâminas saltou e deixou de ser tão afiada como era, o motor foi afectado…

Não quero que me conheçam, só preciso que me utilizem…

Preciso de descansar 20 segundos depois de trabalhar 1 minuto seguido…não sei porquê mas fui descobrindo que se for assim tudo corre bem. Nos primeiros tempos depois de 65 segundos de trabalho intensivo tossia e gemia baixinho, respondia que estava tudo bem, que apenas sentia um ligeiro tremer. Após mais 5 segundos de trabalho parava e desejava nunca mais ver uma batata cozida ansiosa por ser esmigalhada. Nunca contei isto a ninguém, nem a torradeira sabe disso. Só vos conto isto porque vou a caminho do electrão. Sim…o ponto de recolha de electrodomésticos…

A minha torradeira…eu conhecia-a tão bem…sabia qual o seu pão preferido e como devia introduzi-lo. Ela rejubilava quando eu escolhia a intensidade de calor máxima e deixava o pão alourar. Podia parecer que ia queimar mas eu controlava tudo…eu escolhia o tipo de pão, a espessura e dimensão da fatia…tudo para a torradeira expelir a torrada no momento certo. Ela ficava ofegante e eu deleitava-me a barrar manteiga nessa torrada perfeita.

Não vou acrescentar nada, sou uma velha varinha mágica que perdeu o pudor… preciso destas memórias para viver os minutos que me restam até à triagem de materiais.

2 comentários:

Eu disse...

Será que não precisava que a conhecessem? Será que gostava de ser apenas utilizada como um simples e pequeno electrodoméstico?
Será que sabemos interpretar o livro de instruções mesmo quando nos damos ao trabalho de o ler? Será que sabemos interpretar os sinais?
Ficarei à espera para saber se a triagem/reciclagem é ou não a solução/caminho....

mc disse...

Fiquei rendida! Este texto pode não ser apenas um conto sobre electrodomésticos banais mas não tenho respostas correctas para as tuas questões...

Vou reler e opinar:
V.M.(varinha mágica)


1- A V.M. prefere ser utilizada a ser conhecida. Para ser utilizada tem de ser minimamente conhecida (conhecimento do tipo de alimentação electrica, botão para activar o mecânismo..) e o inverso não é verdade.

2- Parece-me que a V.M. se conhece relativamente bem e sabe dar-se a conhecer, aquilo que quer dar a conhecer. Acredito num relacionamento bastante reciproco ou pelo menos duradouro, entre electrodomésticos amáveis e com mau feitio.

3- A minha questão é outra. Até que ponto é que os livros de instruções estão correctos? E qual a sua validade? Acho que só devem funcionar mesmo para produtos feitos em série e sem acidentes de percurso.

4- Alguns sim outros não...e depois existem os supostos sinais que não o são. Interpretar não pode ser um exercício teórico para passar o tempo.

5- A reciclagem é uma fatalidade da vida...a V.M. teve uma longa vida... a reciclagem pode ser vista como uma reencarnação...a velha V.M. que se vai transformar em molas metálicas de canetas...